A expressão “equilibrar vida profissional e vida pessoal” tem uma intenção legítima, mas sempre me deu a impressão de indicar a existência de duas vidas separadas e simultâneas. Nada contra o equilíbrio, claro, mas contra essa visão de múltiplas vidas.
A expressão usada sem muita reflexão pode nos levar a entender que existam vidas distintas, que somos uma coisa e outra, “pessoa normal” e “pessoa profissional”. Como eu me sentia uno e indivisível, buscava equilibrar o trabalho com a vida pessoal através de horas e atenção dedicadas a cada fim, de acordo com uma visão particular de prioridades. A busca do equilíbrio deve ser um esforço contínuo e como todo mundo tive meus erros e acertos. Talvez até fizesse algumas coisas de forma diferente se pudesse voltar no tempo.
Realmente existem pessoas que vivem vidas distintas, conheci muitas assim. Pessoas que assumiam personagens quando no ambiente profissional. Algumas destas pessoas eram tão boas nisso que ninguém percebia. Em vários casos eu só percebi quando a própria pessoa me revelou esta condição. Apenas em conversas mais íntimas, em momentos de desabafo, estas pessoas encaravam a realidade dura de suas opções de postura e comportamento, assumindo que sustentavam máscaras que foram ficando mais pesadas e desconfortáveis a cada dia.
Não estou aqui posando de pessoa perfeita, longe disso. Também fui obrigado a assumir uma certa hipocrisia social no ambiente profissional – às vezes até em família precisamos disso né? Sou como qualquer um, humano, falho e pecador. Mas eu sempre preferi ser eu mesmo, o que em parte pode representar algum mérito, mas em grande parte é porque tenho uma grande dificuldade de interpretar um personagem. Eu nunca sustentaria o personagem durante o espetáculo todo.
Mas o fato é que pessoas que vivem personagens sofrem muito. Agir contra a própria natureza machuca e o medo de ser descoberto pode virar uma neurose.
Nem sempre estes personagens são falsidades para alguém se mostrar mais do que é. Às vezes é o inverso, o que pode ser surpreendente.
Um exemplo: trabalhei vários anos em uma instituição, comandando uma grande equipe. Durante alguns destes anos participei do futebol semanal, organizado por uma galera da minha área e com vários participantes de outras áreas da organização. Ali éramos jogadores “sem crachá”, os cargos não existiam e todos nos divertíamos ou conflitávamos como em qualquer jogo de várzea. Um funcionário de minha equipe era um dos responsáveis pela organização, que envolvia aluguel da quadra, comunicados, cobrança de mensalidades, agendas, churrascos eventuais etc. No trabalho do dia a dia este funcionário era um tanto retraído, ocupava uma posição júnior, mas ali era um líder inconteste, respeitado por todos, dentro de campo e no entorno, na organização de tudo. Este é um exemplo pelo oposto, ou seja, alguém que no trabalho não demonstra todas as qualidades que possui, talvez por receio ou insegurança. Sabendo disso, apenas criei algumas oportunidades, dei algum apoio e orientação e a carreira dele deslanchou.
As nossas habilidades e conhecimentos se aplicam a todas as esferas de nossa vida. Negociação, liderança, empatia e outras competências e habilidades são utilizadas continuamente, apenas com enfoques distintos. Podemos aprender mais e desenvolver estas habilidades exercitando-as em um ambiente e as aplicando em outro.
O que une estas esferas da vida, o fator comum entre todos os ambientes, familiar, social, profissional, são as relações entre as pessoas. E tudo o que acontece de melhor e de pior está sempre ligado ao relacionamento entre pessoas.
Há alguns anos a minha conversão cristã reformulou completamente a minha existência. Durante os primeiros meses eu não via como conciliar aquilo que eu achava que seria a “vida cristã” com as demais áreas do meu dia a dia. E olha que eu já pensava que a vida fosse uma só, embora com ambientes e esferas distintas. Tive que aprender (novamente) que sou uno, que sou uma coisa só, que minha vida é minha vida e que se sou cristão deverei sê-lo em todas as esferas e ambientes, evidentemente respeitando os limites e exigências de cada um.
Quem lê meus textos percebe que falo sobre a vida, que trato o lado profissional e pessoal de uma mesma forma e que compartilho experiências de um lado e de outro sempre na intenção de ajudar pessoas em seus próprios desafios. Trato a vida com a unicidade que acredito que ela tenha. Somos corpo, alma e espírito atravessando essa existência com seus desafios, exigências e deveres mas também com seus amores, prazeres e alegrias. Vivemos de acordo com a nossa consciência moral e sob a nossa transcendência, seja qual for a nossa crença.
Somos o que somos e quanto mais nos conhecermos a nós mesmos melhor poderemos usufruir a vida. Eu demorei bastante a me conhecer e ainda acho que estou no meio do caminho, até porque também evoluo e mudo ao longo do tempo. Muitos esforços de meditação e reflexão me fizeram entender o que sou e aprender a conviver comigo mesmo.
Sempre fiz todos aqueles testes de revista, sabe? Depois fui fazer orientação vocacional para saber em que profissão eu poderia me realizar, fiz cursos de autoconhecimento e ainda anos de terapia. Ainda assim foi necessário um momento de profunda crise e de ruptura para que eu realmente pudesse me desvencilhar de coisas que eu carregava que achava que me definiam, mas que eram apenas apetrechos, “peças de um uniforme”, quase equivalentes às máscaras que citei.
A partir das grandes transformações que enfrentei, passei a mergulhar na simplicidade da vida, naquilo que realmente faz sentido. E só consegui fazer isso sendo aquilo que realmente sou, na minha essência e natureza. Não quero dar a impressão de que esse seja um esforço fácil, pois não é. E a maior parte das pessoas à minha volta não entendeu ou apoiou.
Caso o(a) leitor(a) ainda não tenha feito um amplo esforço de autoconhecimento, tomo a liberdade de sugerir que o faça. Cada minuto e cada dinheiro aplicado neste esforço vale a pena, acredite. Existem muitas formas e caminhos para isso. É óbvio que falei em testes de revista com um tom de brincadeira, mas existem testes psicológicos bastante coerentes e precisos, psicólogos e profissionais de RH sabem disso. Da mesma forma, existem muitos livros a respeito e programas de treinamento bastante sérios. E a terapia, que acho fundamental. Existem muitos terapeutas competentes e responsáveis por aí.
Mas mesmo que você ainda não saiba muito sobre você mesmo(a), sugiro que tenha a consciência de que você é um(a) só. Tentar vestir máscaras, interpretar papéis e personagens em cada ambiente pode se revelar um erro grave, cujas piores consequências cairão sobre você. É claro que você deve se adaptar a cada ambiente. Comportamentos adequados em uma quadra de futebol não serão necessariamente adequados a uma reunião de negócios, mas a sua essência pessoal deverá ser a mesma. Nada pode ser pior do que sufocar aquilo que somos.
Proponho ainda uma reflexão: como tem sido a sua vida na família, com amigos, no trabalho, na escola, na igreja? Você é você mesmo em todas estas esferas? Se for, ótimo, pois existe uma grande chance de você aprender muito em cada uma destas áreas da vida e compartilhar este conhecimento entre as demais, vivendo o melhor em cada uma delas. Mas se você perceber que não é exatamente assim, provavelmente vai encontrar pontos de conflito íntimo, com uma certa dose de dor e sofrimento associada. Reflita a respeito e tente entender os motivos que possam estar te levando a isso. Pode ser que você precise de ajuda e se for o caso não tema em procurá-la.
Além de falar sobre esta “vida una”, baseada na essência daquilo que somos, quero considerar também a fragilidade desta vida. Não do ponto de vista biológico e da morte física, mas de como a vida que temos é vulnerável a adversidades e a conflitos que podem nos arrastar a um buraco sem fim.
Quando jovem eu acreditava que bastava ir fazendo tudo certo que tudo daria certo. Um pensamento bastante simplista, na linha do “estudar, se formar numa faculdade, arrumar um emprego, casar, comprar uma casa, ter uma família e viver feliz para sempre”.
Confesso que tive uma certa surpresa quando percebi que não era assim para todo mundo e foi este insight que marcou o início do meu amadurecimento. Podemos seguir todos os caminhos recomendáveis e realmente construir uma “vida certinha”, mas tudo pode se transformar de forma profunda e abrupta. Vivemos todos sob este risco, mesmo que nossa vida pareça tão normal, constante e tranquila. Adversidades acontecem e podem mudar completamente a nossa realidade da noite para o dia.
Vou falar sobre duas experiências que vivenciei que me mostraram a fragilidade da vida e a facilidade com que as coisas podem desandar.
Hippies em São Thomé das Letras (anos 80)
Nos anos 80 eu vivia minhas primeiras experiências profissionais em conjunto com os estudos. Seguia a vida “responsável”, aquela que pais e mães sonham para os filhos, sabe? Trabalhava e estudava e procurava me encaixar “no sistema” e evoluir. Num determinado momento eu estava de férias no trabalho e na faculdade e estava curtindo uns dias com meus amigos.
Nesta época São Thomé das Letras era um destino da moçada. Promessas de natureza e liberdade com altas doses de misticismo e discos voadores... Já tínhamos ido para lá algumas vezes, mas nesta viagem em especial estávamos todos com pouco dinheiro e sem carro. Numa das viagens anteriores soubemos que no fim de semana de aniversário da cidade iria ocorrer um grande encontro de pessoas, músicos e "malucos". Decidimos que iríamos também.
Sem grana, decidimos ir de carona. Estávamos divididos em dois grupos, um saindo de Guaratinguetá (eu inclusive, com mais dois amigos) e outro de São Paulo. No dia combinado estávamos logo no início da manhã na Dutra com nossas mochilas, uma barraca e polegares estendidos para a estrada. Quem já viajou de carona sabe que é um exercício de paciência. Às vezes você fica horas esperando um motorista caridoso aparecer. Riscos sempre existiram, mas parece que naquela época eram menores. O fato é que encontramos muitos caminhoneiros e motoristas amigáveis. Mesmo assim, um trajeto que de carro levaria umas 3 horas e meia, nós fizemos em dois dias, com várias aventuras no caminho (estas eu conto noutra hora).
Chegamos a São Thomé e a cidade estava vazia. Naquele tempo, as pessoas acampavam em um platô na montanha, um descampado. E não havia nenhuma barraca ali. Descobrimos que havíamos errado o final de semana da festa, que ocorreria duas semanas à frente, mas não tínhamos dinheiro para ficar tanto tempo e eu ainda tinha que voltar ao trabalho.
Na cidade, além dos poucos moradores de então, apenas um bando de hippies circulava por ali. Uns dez ou doze, homens e mulheres. A maior parte moçada, mas alguns que deviam estar nessa vida desde os anos 70.
Inevitavelmente ficamos com eles. Eu e meus amigos estávamos longe de ser “almofadinhas” ou “mauricinhos”, termos do século passado (para ampliar a cultura inútil geral). Mas perto deles éramos príncipes.
Sinceramente, não sei como sobreviviam. Sei que faziam e vendiam artesanato de vez em quando, mas praticamente não comiam. Quando aparecia algo para comer era logo dividido, da mesma forma que as garrafas de cachaça, garrafões de vinhos e outras substâncias que eram compartilhadas entre todos. Assim sumiram nossos pacotes de biscoitos e chocolates.
Mas eram divertidos, tinham um violão, cantavam em volta da fogueira, peregrinavam pelas trilhas e cachoeiras e vivemos uns dias ali com eles, compartilhando a mesma dieta de pouca comida e muitos líquidos.
Observador e curioso, fui conversando com uns e outros e tentando entender suas histórias e por que viviam daquela forma. Alguns falavam a respeito, outros se esquivavam. Mas entre as histórias que consegui saber todas apresentavam conflitos com pais e familiares. Divergências quanto aos rumos da vida, episódios de abuso e violência, uso de drogas e álcool (por pais e filhos), conflitos insolúveis.
Muitos estavam na estrada há tempos, com pouco ou nenhum contato com seus familiares. Eu pensava em como minha mãe sofreria se eu saísse pela vida dessa forma, pois também vivia conflitos muito difíceis com meu pai. Vislumbrei que, mesmo vivendo minha vida certinha, facilmente eu poderia descambar para uma vida como aquela.
Quando nos encontramos eu pensei que viviam muito distantes da minha realidade. Foi uma diversão da juventude conviver com eles uns dias, vivendo a vida que eles levavam. Mas ao conhecê-los mais a fundo vi o quanto esta vida era dura e como aquela realidade estava tão próxima a mim. Percebi como qualquer erro ou decisão a partir de um conflito significativo poderia descambar em um destino completamente adverso do que eu imaginava. E eu era tão frágil quanto qualquer um deles.
Catadores no Castelinho da Rua Apa (anos 90)
A outra experiência ocorreu ao lá pelo fim dos anos 90, quando eu conduzia projetos de desenvolvimento econômico. Fui contratado por uma instituição empresarial que pretendia envolver os catadores de resíduos da capital de São Paulo em um projeto de aproveitamento de aparas de tecido nas confecções da região central da cidade.
Meu primeiro passo foi tentar entender a realidade destes catadores. Eles se reuniam em um imóvel conhecido como “Castelinho” na Rua Apa, um imóvel cercado de mistérios (vale a pena pesquisar no Google a respeito). Hoje está reformado, mas naquela época estava abandonado e era usado como base destes catadores.
Lá conheci histórias incríveis. E mais uma vez vi a fragilidade da vida que levamos. Encontrei pessoas que haviam tido posições de sucesso na vida (dentro do conceito de vida certinha que falei), engenheiro de indústria, bancário, lojistas, motoristas, operários e até um professor. Todos viveram tragédias similares, que em maior ou menor grau envolviam álcool, às vezes drogas, e sempre conflitos familiares insuperáveis aos seus entendimentos. Famílias destruídas, filhos abandonados, vidas incertas, carregando carroças e dormindo sob viadutos, na companhia de seus fiéis vira-latas.
Eu já estava casado, com duas filhas pequenas. Pensei na dor deste afastamento, muito maior do que qualquer desconforto de dormir ao relento nas ruas. Novamente percebi como a vida que eu levava, como "homem sério", trabalhador e membro ativo da sociedade poderia descambar num segundo. Esta percepção trouxe um frio na espinha.
A instituição decidiu não levar o projeto adiante. Anos depois me vi envolvido novamente em projetos de reciclagem que envolviam catadores, que desta vez estavam mais organizados institucionalmente e atuando efetivamente na cadeia de reciclagem de várias cidades do país. Infelizmente a maioria ainda vive em condições muito ruins, muitos ao relento e sem suporte formal.
Fora dos esforços governamentais, existem muitas obras assistenciais ligadas a igrejas e voluntários que levam algum apoio material, alimentar e psicológico a estas pessoas. Pessoas que encontram propósito e amor ao servir a outras. Não sou um destes voluntários ativos, eventualmente tenho algum contato, mas sempre me impressiono com a abnegação e o prazer que estas pessoas têm em servir.
Quis contar estas histórias para mostrar que tenho a exata percepção de que eu poderia tranquilamente ser um destes que se perderam no caminho. Eu poderia ter assumido posições e opções que me levariam a ser um deles. Se em um momento da minha vida acreditei que bastaria seguir as regras da vida certinha que tudo estaria bem, depois percebi que estas regras não existem e que não há garantias de acerto contínuo. Uma escolha errada leva a outra e de repente tudo se vai. A vida é frágil, muito mais do que pensamos. E até por isso devemos ser aquilo que somos, respeitando a nossa essência.
Você não é o “João da Silva, diretor do banco X” ou a “Maria da Silva, advogada sênior do Escritório Y e associados” nem o “Pedro da Silva, engenheiro de Telecom”. Eu também já tive um sobrenome institucional e quando o perdi senti o baque. Mas o que vivi depois disso me levou a um longo processo de busca da minha essência, um esforço para compreender minhas fragilidades e vulnerabilidades, além das forças e talentos. Como resultado pude perceber estas pessoas à nossa volta, praticamente invisíveis, como pessoas iguais a mim e eu como um deles.
Antes eu pensava que estas realidades das ruas estava muito distante de mim, mas hoje, quando vejo um mendigo pedindo esmolas, entendo como facilmente eu poderia estar em seu lugar. Isso faz com que eu o respeite ainda mais, faz com que eu reconheça o quanto sou agraciado por Deus pelo que tenho, mesmo com tantos problemas. Reflito como sou frágil e dependente de Deus para as minhas escolhas, de como sou capaz de errar e me irmano na dor deste mendigo. Muitas vezes não tenho como contribuir com esmolas, nem tenho o dom de ser um dos apoiadores da igreja que tanto bem fazem a estes moradores de rua. Respondo educadamente, ao menos, reconhecendo-os como seres humanos. E intimamente busco orar e com minha oração sincera buscar algum reconforto espiritual para as suas vidas difíceis.
Independente de nossas crenças, neste momento em que estamos neste planeta nós temos uma única vida. Uma vida linda e frágil. Temos a obrigação de honrar a possibilidade de estarmos vivos aqui e neste tempo, vivendo esta vida de forma íntegra. Não precisamos ser perfeitos, nem podemos esperar ou exigir esta perfeição de nós mesmos ou dos outros, mas devemos viver de acordo com aquilo que somos e a partir das escolhas que fizermos.
Toda escolha trará consequências e devemos estar preparados para elas. Conflitos são inevitáveis, mas a sua solução depende de sermos humildes, reconhecermos nossos erros, renunciarmos a nosso egoísmo em favor do outro. Devemos ser mais condescendentes com as falhas alheias, tanto com as nossas próprias. Devemos buscar a paz, mais do que a necessidade de estarmos certos todo o tempo.
Sua vida é uma só. Viva como se fosse.
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