Sou daqueles que tem afinidade com a saudade. Dos que se entregam aos devaneios daquilo que foi e, principalmente, daquilo que poderia ter sido.
Dizem que sou melancólico. Pode ser. Sou dado à quietude, ao isolamento, ao pensar mais do que ao falar. Um tanto triste reconheço. Acredito que tristezas nos fazem refletir mais do que as alegrias. Alegrias são usufruídas, tristezas são sobrevividas.
Olhando a vida percebo que meu estado normal é de uma tristeza vaga, tênue, inexplicável, quase sempre presente. Alegrias se aproveitam. As tristezas não. Elas permanecem como o cenário da peça teatral que é a vida, enquanto o drama, a comédia e o romance acontecem no palco à frente.
Talvez eu tenha a alma de artista. Ou de um filósofo. Não sou nem um nem outro por ter levado a vida por outros caminhos, mas agora não mais. Deixo a sensibilidade aflorar ao nível da pele e irradio minhas emoções ao mesmo tempo em que capto as energias do lugar, que sinto a alma das pessoas, que me toco pelo que há no ar. Assim o que trago por dentro se mistura ao que recebo de fora, provocando pensamentos, formulações, questionamentos, discussões internas entre meu coração e minha mente.
Há pouco tive a felicidade de encontrar um artigo de Moacyr Scliar, chamado “O nascimento da melancolia”. O autor apresenta um longo tratado sobre a melancolia ao longo da história e seu entendimento como doença ou mal afligindo o homem.
Em um dos trechos Scliar cita um posicionamento filosófico de Aristóteles:
Mas a melancolia é só isso, uma doença? A dúvida deu origem a uma famosa questão de Aristóteles, o Problema XXX: “Por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne à filosofia, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos?”. Nessa pergunta está implícita uma importante diferenciação: seres humanos normais podem adoecer de melancolia, mas há uma melancolia natural que torna o seu portador genial, “normalmente anormal”..... O temperamento melancólico é um temperamento metafórico, propenso, pois, à criação – na filosofia, na poesia, nas artes. Mas os melancólicos pagam um preço: esse talento os arrebata e os conduz pela vida como um “barco sem lastro”, na expressão de Sócrates.
Já enfrentei a depressão e sei da sua gravidade. De forma alguma quero negar os aspectos médicos ou psicológicos envolvidos nessa situação e na associação de tristeza constante, melancolia e depressão. Mas tomo a licença do leitor e da leitora para uma visão mais filosófica, me apropriando da ideia de que possuo um temperamento metafórico, propenso à reflexão do mundo que me cerca. Como disse Esquirol, citado no artigo, melancolia se trata de um termo adequado só para poetas e filósofos; que, à diferença dos médicos, podem prescindir da precisão.
Sócrates Crédito: Wikimedia Commons/Wikipedia
Não me considero uma exceção, antes um homem de reflexão, observador da vida e do mundo, buscando conexões e sentidos nas coisas e pessoas como forma de saciar a minha própria sede infinita de compreensão. Um tanto egoísta, portanto. Se algo resulta dessa reflexão são esses escritos lançados ao vento, como forma de expor o que me mexe por dentro, para que novas reflexões venham e emoções se manifestem construindo metáforas da realidade enquanto sintonizo o mundo e seus humores.
Vivo uma nova experiência estando em Portugal, longe da família. Algumas pessoas me alertaram previamente sobre um tal “humor depressivo” existente no pais. Pode ser que exista mesmo. É verdadeiro um certo clima melancólico na alma portuguesa, que deve ter suas razões, manifestado na arte de forma geral, mas que no fado talvez tenha sua maior expressão. Sou tocado por esse mood, assim como sou quando viajo pela Argentina, outro pais que amo. A alma portenha tem esse mesmo traço melancólico e novamente é na música através do tango a sua melhor tradução.
Escrevo essas linhas sendo conduzido por Astor Piazzolla. Penso no tanto de coisas que observei nesses dias e ao longo de tantas viagens. Sinto falta das minhas peregrinações de moto pelos pampas argentinos, mas as imagens e impressões seguirão comigo, eternizadas na alma.
Antes dessa quarentena, passei dias de tristeza profunda e alegria plena, enquanto observava à minha volta, sendo tocado pelo ânimo e pela alma dos lugares onde passava. Dentro de mim a certeza de que tudo o que observava e sentia começava a se acumular para ser processado de alguma forma um dia. Minhas reflexões são assim, observações regurgitadas fermentadas pelas emoções e pensamentos.
É da alma de escritor isso, não? Observar, absorver, traduzir, entregar ao mundo uma visão individual e universal sobre a vida que se vive.
A melancolia tem seus riscos e seus custos. O risco de virar uma depressão, como a psicologia e a medicina consideram. Mas há também o custo do isolamento necessário à reflexão, que pode descambar para um estado solitário permanente. Existem os riscos de que mergulhos excessivos em pensamentos levem à perda da capacidade de ação. A vida intelectual se contrapondo à vida prática.
Entretanto, a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, presidente da Sociedade Internacional da História da Psiquiatria e da Psicanálise na França, reconhece a importância de momentos de melancolia como forma de obter reflexões existenciais produtivas, destacando seu potencial criativo.
A introspecção pode contribuir para a ampliação da consciência do indivíduo sobre a sua condição, tornando-o mais intuitivo e empático à outras pessoas.
O maior aprendizado que tenho em meus vários esforços de autoconhecimento é sobre reconhecer as minhas emoções. Perceber um estado emocional aflorando e se instalando e, com isso, enfrentá-lo ou usufruí-lo.
No passado tentava combater a tristeza à todo custo. Falei disso num texto recente. Não sabia diferenciar um estado melancólico de uma tristeza profunda e debilitante. Hoje me conheço melhor e se me transformei também em uma pessoa melhor foi por refletir sobre a vida e sobre a minha inserção no mundo em que vivo e entre as pessoas que me cercam. Mas foi preciso aceitar a tristeza.
A reflexão melancólica pode ser transformadora, mesmo trazendo riscos. Esse estado da alma nunca foi uma opção e aprender a conviver com a melancolia foi a minha escolha e solução.
Mais uma vez reforço que não rejeito os cuidados sobre as enfermidades mentais como a depressão. Fiz análise por muito tempo, tomei antidepressivos e voltarei a tomá-los se necessário for. Mas hoje mais maduro e experiente sei reconhecer meu estado mental e emocional, aceitando a melancolia como parte de mim. Uma parte essencial daquilo que sou.
Desenvolver a minha dimensão espiritual e alimentar a minha fé foi parte fundamental do processo. Tenho profundo respeito pelas opções espirituais das pessoas, porém tenho a minha fé cristã e a sigo buscando a referência do sagrado como eixo que me alinha à vida. A minha comunhão com Deus me habilita a refletir sobre o mundo. O amor a Deus viabiliza, sustenta e expande o amor às pessoas.
Estudar Jesus e seu caminho me desafia, por perceber o divino aliado ao humano, a perfeição de Deus em um homem, com suas fraquezas e emoções. Ele se entristecia, sofria, tinha momentos melancólicos.
Por que Deus nos daria essas capacidades emocionais e por que Jesus as manifestava aqui, se elas não fossem parte da vida humana e potenciais alavancas do nosso aprendizado sobre a existência? Como reconhecer a felicidade sem conhecer a tristeza? Como experimentar a vida em toda a sua plenitude sem refletir sobre ela, sem recordar o que foi vivido, sem sonhar com o que há por viver?
Se nos é dada a memória do passado e a possibilidade de sonhar com o futuro, porque se restringir ao presente? Sim, a vida acontece no “hoje”, mas é com os aprendizados de ontem e com a visão do amanhã que saberemos viver com excelência. Basta a cada dia o seu próprio mal, mas isso não significa que devemos nos resignar e abandonar tudo à própria sorte. Olhai os lírios do campo e as aves no céu, Deus cuida delas a cada dia, mas todos cumprem o seu papel na criação e nos planos do Pai.
A reflexão é característica humana. Aprender com as experiências, dores e alegrias é a condição de evolução. Amar ontem, hoje e amanhã é a essência da existência. Somos seres pensantes, afetuosos, livres para pensar, sonhar, acreditar, negar. O caminho é dado, mas ninguém é obrigado a segui-lo. Viver plenamente ou apenas seguir sobrevivendo é uma escolha.
Eu decidi viver em toda a minha dimensão humana. Serei alegre e triste, feliz e saudoso, racional e emocional, melancólico e entusiasmado. Serei tudo aquilo que posso ser, tudo aquilo que fui criado para ser. Quero a vida em todas as suas vertentes, quero minhas emoções plenas e não anestesiadas. Quero a realidade temperada de fantasia e a fantasia sem pé na realidade. Quero sonhar, quero chorar, quero respirar, rir e viver.
Encerro por aqui, com uma taça de um tinto do Douro e Piazzola declamando “Vuelvo al Sur”. E brindo à vida.
Para quem tiver interesse, aqui está o link para o artigo completo do Moacyr Scliar
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