Mudamos por necessidade, por vontade, por evolução ou por imposição. Simplesmente mudamos e mudamos sempre, de um jeito ou outro, querendo ou não. Viver é mudar continuamente independente de nossa escolha ou autonomia. Não mudar é não viver e pensar que nada mudará é viver uma vida que não existe.
Parece melhor quando estamos no controle do processo. Definimos objetivos e metas, organizamos os esforços e controlamos os recursos. Administramos cada etapa, ajustando o foco, alinhando cada passo. As emoções ao lado sentindo cada avanço e reagindo a cada obstáculo, fazendo parte do mesmo conjunto orquestrado de forças, motivações, fraquezas e inseguranças.
Noutras vezes simplesmente somos parte de uma mudança maior, que nos envolve e conduz. Somos figurantes, não protagonistas. Atuamos no enredo construído por outros fazendo o que nos cabe e tendo a nossa própria cota de anseios e receios. Pouco depende de nós e apenas seguimos o fluxo, nossas emoções reagindo ao ânimo ou desânimo de cada etapa. Seguimos entregues, outra forma não há, confiando no destino desenhado por terceiros e sonhando com o nosso quinhão desse futuro.
Mas as mais poderosas mudanças não são controladas, administradas, criadas ou planejadas. Elas são impostas pela vida, ou seja qual for a justificativa apresentada pela sua crença: pelo destino, pelo karma, por Deus, pela evolução espiritual, pelas energias, pelo acaso... qualquer que seja a sua origem essas são muito mais intensas e profundas que qualquer outra.
Não são pequenas tais mudanças, que nada tem de sutis ou discretas. São hecatombes, bombas atômicas, furacões desesperados, tsunamis avassaladores. Nada fica igual ao que era e ninguém escapa ileso. Qualquer esforço no fluxo da mudança enquanto ela ocorre é inútil, como dar braçadas buscando fugir da onda do tsunami ou pular enquanto o terremoto chacoalha o solo sobre nossos pés.
No fluxo do cataclismo as emoções que se danem, irão variar e flutuar ao sabor dos ventos e tremores. Sintamo-nos mal ou bem com os acontecimentos nada mudará o destino das forças até que se concluam naquilo que buscam. Não depende de nós, alegres ou tristes, calmos ou desesperados, nada em nós muda o avanço das transformações, nada as acelera ou retarda pois a mudança tem seu próprio tempo. Só podemos seguir o fluxo e ousar decidir o quanto nos impactaremos com a volúpia assustadora ao nosso redor.
Podemos nos apoiar na fé, nos anestesiar ou tentar ignorar. Sinceramente, não faz a menor diferença para a calamidade em curso. Nossos esforços não irão definir a mudança ou seu destino, mas tão somente a forma como chegaremos ao fim: mais lúcidos ou loucos, mais sãos ou doentes, mais humanos ou frios, mais amor ou indiferença, mais dignidade ou fraqueza, mais esperança ou ressentimento.
Não existe momento fácil em tal cataclismo, nenhum deles é. No início não sabemos o tamanho da coisa nem quanto tempo vai durar. O tempo vai passando, o furacão continua, as águas não se acalmam e acabamos aprendendo a simplesmente respirar e seguir. Dói e cansa, mas ainda assim avançamos movidos por alguma força íntima que estranhamente vai se renovando, dia após dia. A misericórdia sobre nós, que se renova a cada momento de escuridão até que as trevas terminem.
Pode durar semanas, meses, anos. Vivi em todas as durações que minhas forças permitiram. Eu, que embora tenha atravessado tempestades de outros como passageiro em navios soçobrados, não tinha ainda estrutura para meus próprios naufrágios. Minha musculatura só se desenvolveu nas minhas próprias tormentas.
O furacão permanece, as águas ainda inundam nossa realidade e tudo o que queremos é que passe. Ansiamos pela volta ao normal. Oramos para que os ventos empurrem as nuvens para longe, que o sol brilhe e que a vida volte a ser o que era. Uma simples tempestade permitiria o retorno à vida normal só que a calamidade de um furacão muda tudo definitivamente.
Não existe volta à vida anterior, tudo arruinado naquilo que um dia foi. Não existe mais a vida como era e demora até entendermos que assim será. Dói fundo até por não compreendermos a grandiosidade daquilo que sobre nós se impôs.
A percepção de que nada mais será como antes é a maior dor trazida pelo cataclismo... mas também a sua maior esperança.
Os ventos e as ondas impuseram a mudança em todas as bases que considerávamos sólidas enquanto o máximo que podíamos fazer era respirar. As águas menos revoltas agora nos permitem olhar para aquilo que considerávamos fundações concretas de nossas vidas e ver que nada mais resta ou pouco sobrou, apenas alguns destroços empilhados aqui e ali. Já percebemos que as águas irão baixar, que o sol virá, mas ainda não temos ideia de como será a vida a partir de agora.
Onde está a casa que estava ali? Onde era mesmo a rua? Cadê a farmácia, o supermercado? Era aqui mesmo a cidade em que morávamos? Não sobrou nada, o que faremos agora?
As águas nem secaram e já percebemos que decisões se impõem. Nada mudou por nossa vontade ou plano mas agora somos obrigados a definir nossos próximos passos. Não dá mais para ficarmos ao sabor das ondas pois nem ondas teremos mais, e o futuro depende do que fizermos agora.
Podemos seguir como náufragos, vitimizados e legitimamente fragilizados pelo ocorrido, viver como sobreviventes apegados ao que éramos. Podemos ajeitar o pouco que restou como uma imagem embaçada daquilo que um dia foi. Ninguém poderá nos culpar pelo efeito da calamidade sobre nossas vidas e podemos seguir em frente, um dia por vez, empurrando destroços aqui e ali, até que um dia a vida finalmente acabe.
Ou não.
A mudança imposta pelo flagelo nos jogou em terra arrasada. A verdadeira esperança é a possibilidade de arriscar fazer tudo novo. Nem aqui precisamos permanecer, não nessa terra ou país. Por que não ousar agora? O que nos impede? O que teríamos a perder se tudo já se foi?
Há muito as ondas romperam as cordas e as ancoras agora só tem um imaginário poder herdado sobre nossas vidas. Se vivemos tanto tempo ao sabor das ondas em meio à tempestade, não podemos então navegar por outros oceanos agora que o mar serenou e o sol ilumina o destino?
É esta a fase misteriosa do cataclismo. Até então apenas surpresa, angústia e dor. Agora a surpresa foi trocada por alguma certeza e a angústia afogada pela esperança.
A dor permanece pois buscar outros oceanos exige o desenlace. Não sei se é uma dor diferente, talvez seja a mesma, mas de alguma forma se mostra agora conclusiva e pronta a ser superada um dia, deixando memórias, saudades, algumas mágoas e remorsos.
Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar
E se perder
E se achar
E tudo aquilo que é viver
Eu quero mais é me abrir
E que essa vida entre assim
Como se fosse o sol
Desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor dessa manhã...
(Gonzaguinha – Explode Coração)
A mudança imposta se conclui inspirando a esperança do novo.
Nada de certos e errados, nada de vida cor de rosa, mas a certeza de uma existência renovada pelos desafios vencidos, pelas ondas superadas e sobrevividas.
A vida não é nem será cor de rosa, insisto. Mas há de haver arco-íris após as chuvas, flores após a neve, outros erros e acertos em novos passos caminhados por diferentes destinos.
A vida enfim, a ser vivida com a memória do que foi mas sobretudo com a esperança pelo que ainda será.
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